Quando tudo dá errado em cadeia: o que o caso da epinefrina ensina sobre responsabilidade e segurança na enfermagem
- praticenfgp
- há 17 horas
- 6 min de leitura
Um erro na administração de um medicamento de alta vigilância levou à morte de uma criança após a aplicação de 3 ml de epinefrina. O caso ganhou repercussão nacional, gerou revolta, comoção e uma pergunta ecoou com força: “Cadê o enfermeiro?”
Por trás dessa pergunta existe algo muito maior do que apontar um culpado. Existe um sistema inteiro que falhou: médico, técnica de enfermagem, farmácia, protocolos, fluxos e cultura de segurança.Este texto não é para julgar pessoas. É para você, profissional ou estudante de enfermagem, refletir sobre a sua prática, sua formação e o tipo de profissional que você está construindo.
1. O que aconteceu de fato? (sem sensacionalismo)
De forma resumida, o cenário foi mais ou menos assim:
Houve uma prescrição médica equivocada de epinefrina em dose e via inadequadas para uma criança.
A técnica de enfermagem, que nunca havia administrado o medicamento daquela forma, reconheceu que “tinha algo estranho”, mas mesmo assim seguiu com a administração.
A farmácia liberou o medicamento em quantidade incompatível com uso rotineiro e com o contexto.
Não houve acionamento eficiente de suporte especializado nem utilização adequada de fluxos e protocolos de emergência.
Resultado: o erro não foi interceptado em nenhuma camada, evoluindo para um desfecho trágico.
Isso é exatamente o que a literatura de segurança do paciente chama de Teoria do Queijo Suíço: várias barreiras de segurança existem, mas quando todas falham ao mesmo tempo, os “furos” se alinham e o evento acontece.
2. Teoria do Queijo Suíço: o erro nunca é de uma pessoa só
A Teoria do Queijo Suíço (James Reason) ilustra que erros graves raramente são fruto de uma única ação isolada. No caso:
Camada 1 – Prescrição - Erro médico na dose e/ou via de administração de um medicamento de alta vigilância.
Camada 2 – Enfermagem (técnico) - Profissional percebeu que “nunca tinha feito daquele jeito”, mas não interrompeu o processo para checar com enfermeiro/médico.
Camada 3 – Farmácia - Liberação de ampolas de epinefrina em quantidade significativa, sem qualquer trava adicional (dupla checagem, restrição por perfil de profissional, checagem de protocolo).
Camada 4 – Fluxos e protocolos institucionais - Ausência (ou não cumprimento) de protocolos claros para:
o drogas de alta vigilância,
o uso de carrinho de emergência,
o liberação de medicamentos vasoativos,
o atuação da equipe em caso de dúvida ou evento adverso.
Camada 5 – Formação e qualificação - Profissionais atuando em cenário de urgência/emergência sem preparo adequado para alta complexidade, especialmente pediatria e uso de drogas críticas.
É uma falha sistêmica. Não é confortável assumir isso, mas é necessário.
3. “Cadê o enfermeiro?” – o que é, de fato, papel do enfermeiro no pronto-socorro?
Uma crítica comum nas redes foi: “Cadê o enfermeiro que não conferiu a prescrição?”
Na prática, quem já trabalhou em pronto-socorro sabe que:
Em grandes prontos-socorros, múltiplos médicos atendem simultaneamente, gerando dezenas de prescrições por hora.
O enfermeiro está:
o recebendo pacientes graves,
o organizando fluxo,
o acompanhando internações,
o gerenciando equipe,
o resolvendo intercorrências,
o preparando transferências,
o checando leitos, materiais, equipamentos.
É irreal imaginar que, no modelo atual da maioria dos serviços, o enfermeiro vá conferir uma a uma todas as prescrições de pronto-atendimento antes que cheguem à farmácia ou à administração.
Na prática, o que costuma acontecer é:
O enfermeiro gerencia prescrições de internação (aprasa antibiótico, organiza horários, confere terapia contínua).
No pronto-atendimento, a conferência 100% prévia de todas as prescrições exigiria um enfermeiro exclusivamente para isso.
Isso significa que o enfermeiro não tem responsabilidade? De forma alguma. Significa que:
O foco da atuação do enfermeiro no PS é gestão da unidade, segurança do cuidado, fluxos e protocolos, mais do que checar manualmente medicamento por medicamento.
Quando se fala “Cadê o enfermeiro?”, a pergunta mais justa seria: “Cadê o enfermeiro na construção dos fluxos, protocolos e travas de segurança desse serviço?”
4. Drogas de alta vigilância: burocracia que salva vida
Epinefrina, noradrenalina, sedativos potentes, opioides, drogas vasoativas em geral não são medicamentos para circulação livre e dispensação banal.
Em um fluxo minimamente seguro, é esperado que:
Drogas de alta vigilância estejam preferencialmente no carrinho de emergência, sob controle rígido.
A liberação pela farmácia:
o tenha critérios específicos,
o seja rastreável,
o envolva travas (farmacêutico e/ou enfermeiro responsável).
Haja dupla checagem em:
o dose,
o diluição,
o via,
o paciente.
Sim, isso é burocrático. Mas é justamente essa “burocracia” que quebra a cadeia de erros antes que o pior aconteça.
No caso relatado, o fato de um técnico conseguir pegar, sem nenhuma trava, um medicamento de altíssimo risco na farmácia mostra um problema estrutural muito grave: não é só erro humano, é erro de sistema.
5. O papel do técnico de enfermagem: quando a dúvida é um sinal de alerta
A técnica de enfermagem “nunca tinha feito daquela forma”, estranhou a via/dose, a mãe questionou, e mesmo assim o procedimento foi realizado.
Do ponto de vista ético e legal:
O Código de Ética da Enfermagem é claro: o profissional não deve executar procedimento para o qual não se sente seguro ou que considere inadequado, sem antes questionar e esclarecer.
“Eu só obedeci” não protege ninguém, nem profissional, nem paciente.
Para o técnico de enfermagem, ficam lições duras, porém importantes:
Na dúvida, pare. Questione. Chame o enfermeiro. Chame o médico. Registre se for preciso.
É melhor “levar bronca” por atrasar a medicação do que manter uma conduta que você já sente que está errada.
Dúvida em droga de alta vigilância não é detalhe. É alerta máximo.
6. Formação rasa x prática em alta complexidade
Outro ponto essencial é a formação:
Atuar em urgência e emergência, principalmente com pediatria e drogas críticas, exige preparo real.
Não é curso raso, pós-graduação superficial ou conteúdo “decorado” que vai sustentar decisão em situação de pressão.
Alguns pontos que o caso escancara:
Médico emergencista precisa ser treinado para urgência, não apenas “quebrar galho”.
Enfermeiro de pronto-socorro precisa de:
o base sólida em farmacologia de emergência,
o manejo de via aérea,
o interpretação clínica rápida,
o liderança em crise.
Técnico precisa conhecer:
o nome, via, dose usual e riscos básicos dos medicamentos que administra,
o quando parar e pedir ajuda.
Não é sobre colecionar certificados. É sobre competência real ligada à vida real do paciente.
7. O que esse caso ensina, na prática?
Em vez de buscar “o grande culpado”, vale transformar esse episódio em uma lista de aprendizados:
1. Drogas de alta vigilância exigem travas de segurança institucionais. Não podem ser tratadas como medicamentos comuns de prateleira.
2. Fluxos claros salvam vidas.
o Quem pode retirar?
o De onde?
o Com qual autorização?
o Em quais situações?
3. O técnico de enfermagem não é executor cego. Tem autonomia e dever ético de questionar sempre que tiver dúvida.
4. O enfermeiro precisa estar na construção do sistema, não apenas “apagando incêndio”.
o Protocolos
o Treinamento
o Organização de carrinho de emergência
o Interface com farmácia
5. Formação em urgência não pode ser “meia boca”. Se você escolhe trabalhar em pronto-socorro, UTI, porta de emergência, precisa assumir o peso dessa escolha em termo de estudo.
6. Cultura de segurança significa cultura de humildade.
o Fazer pergunta difícil
o Admitir que não sabe
o Interromper um processo que parece errado
8. Conclusão: antes de apontar o dedo, olhe para o sistema – e para si mesmo
A pergunta “Cadê o enfermeiro?” é legítima, mas incompleta.
Melhor seria perguntar:
Cadê o fluxograma de alta vigilância do hospital?
Cadê o protocolo de liberação de drogas críticas?
Cadê a cultura que encoraja técnico a dizer “não vou fazer até esclarecer”?
Cadê a formação sólida em urgência/emergência para quem está na linha de frente?
O que aconteceu com essa criança não é “apenas um erro”. É o resultado de camadas de descuido, formação insuficiente, fluxos frágeis e silêncio diante da dúvida.
Se você está lendo isso como enfermeiro, técnico ou estudante, a provocação é simples e direta:
Você está estudando para ter conhecimento ou só para ter certificado?
Se amanhã alguém questionar uma prescrição estranha na sua frente, você vai repetir o fluxo no automático ou vai ter coragem de interromper?
Porque, no fim, a linha que separa uma conduta segura de uma catástrofe pode ser justamente o momento em que você escolhe perguntar em vez de apenas obedecer.
Prof. Éder MarquesPrática Enfermagem
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