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Quando tudo dá errado em cadeia: o que o caso da epinefrina ensina sobre responsabilidade e segurança na enfermagem

Um erro na administração de um medicamento de alta vigilância levou à morte de uma criança após a aplicação de 3 ml de epinefrina. O caso ganhou repercussão nacional, gerou revolta, comoção e uma pergunta ecoou com força: “Cadê o enfermeiro?”


Por trás dessa pergunta existe algo muito maior do que apontar um culpado. Existe um sistema inteiro que falhou: médico, técnica de enfermagem, farmácia, protocolos, fluxos e cultura de segurança.Este texto não é para julgar pessoas. É para você, profissional ou estudante de enfermagem, refletir sobre a sua prática, sua formação e o tipo de profissional que você está construindo.



1. O que aconteceu de fato? (sem sensacionalismo)


De forma resumida, o cenário foi mais ou menos assim:


  • Houve uma prescrição médica equivocada de epinefrina em dose e via inadequadas para uma criança.

  • A técnica de enfermagem, que nunca havia administrado o medicamento daquela forma, reconheceu que “tinha algo estranho”, mas mesmo assim seguiu com a administração.

  • A farmácia liberou o medicamento em quantidade incompatível com uso rotineiro e com o contexto.

  • Não houve acionamento eficiente de suporte especializado nem utilização adequada de fluxos e protocolos de emergência.

  • Resultado: o erro não foi interceptado em nenhuma camada, evoluindo para um desfecho trágico.


    Isso é exatamente o que a literatura de segurança do paciente chama de Teoria do Queijo Suíço: várias barreiras de segurança existem, mas quando todas falham ao mesmo tempo, os “furos” se alinham e o evento acontece.



2. Teoria do Queijo Suíço: o erro nunca é de uma pessoa só


A Teoria do Queijo Suíço (James Reason) ilustra que erros graves raramente são fruto de uma única ação isolada. No caso:


  • Camada 1 – Prescrição - Erro médico na dose e/ou via de administração de um medicamento de alta vigilância.

  • Camada 2 – Enfermagem (técnico) - Profissional percebeu que “nunca tinha feito daquele jeito”, mas não interrompeu o processo para checar com enfermeiro/médico.

  • Camada 3 – Farmácia - Liberação de ampolas de epinefrina em quantidade significativa, sem qualquer trava adicional (dupla checagem, restrição por perfil de profissional, checagem de protocolo).

  • Camada 4 – Fluxos e protocolos institucionais - Ausência (ou não cumprimento) de protocolos claros para:

o   drogas de alta vigilância,

o   uso de carrinho de emergência,

o   liberação de medicamentos vasoativos,

o   atuação da equipe em caso de dúvida ou evento adverso.

  • Camada 5 – Formação e qualificação - Profissionais atuando em cenário de urgência/emergência sem preparo adequado para alta complexidade, especialmente pediatria e uso de drogas críticas.


É uma falha sistêmica. Não é confortável assumir isso, mas é necessário.



3. “Cadê o enfermeiro?” – o que é, de fato, papel do enfermeiro no pronto-socorro?


Uma crítica comum nas redes foi: “Cadê o enfermeiro que não conferiu a prescrição?”


Na prática, quem já trabalhou em pronto-socorro sabe que:


  • Em grandes prontos-socorros, múltiplos médicos atendem simultaneamente, gerando dezenas de prescrições por hora.

  • O enfermeiro está:

o   recebendo pacientes graves,

o   organizando fluxo,

o   acompanhando internações,

o   gerenciando equipe,

o   resolvendo intercorrências,

o   preparando transferências,

o   checando leitos, materiais, equipamentos.


É irreal imaginar que, no modelo atual da maioria dos serviços, o enfermeiro vá conferir uma a uma todas as prescrições de pronto-atendimento antes que cheguem à farmácia ou à administração.


Na prática, o que costuma acontecer é:


  • O enfermeiro gerencia prescrições de internação (aprasa antibiótico, organiza horários, confere terapia contínua).

  • No pronto-atendimento, a conferência 100% prévia de todas as prescrições exigiria um enfermeiro exclusivamente para isso.

  • Isso significa que o enfermeiro não tem responsabilidade? De forma alguma. Significa que:

  • O foco da atuação do enfermeiro no PS é gestão da unidade, segurança do cuidado, fluxos e protocolos, mais do que checar manualmente medicamento por medicamento.

  • Quando se fala “Cadê o enfermeiro?”, a pergunta mais justa seria: “Cadê o enfermeiro na construção dos fluxos, protocolos e travas de segurança desse serviço?”



4. Drogas de alta vigilância: burocracia que salva vida


Epinefrina, noradrenalina, sedativos potentes, opioides, drogas vasoativas em geral não são medicamentos para circulação livre e dispensação banal.


Em um fluxo minimamente seguro, é esperado que:


  • Drogas de alta vigilância estejam preferencialmente no carrinho de emergência, sob controle rígido.

  • A liberação pela farmácia:

o   tenha critérios específicos,

o   seja rastreável,

o   envolva travas (farmacêutico e/ou enfermeiro responsável).

  • Haja dupla checagem em:

o   dose,

o   diluição,

o   via,

o   paciente.


Sim, isso é burocrático. Mas é justamente essa “burocracia” que quebra a cadeia de erros antes que o pior aconteça.


No caso relatado, o fato de um técnico conseguir pegar, sem nenhuma trava, um medicamento de altíssimo risco na farmácia mostra um problema estrutural muito grave: não é só erro humano, é erro de sistema.



5. O papel do técnico de enfermagem: quando a dúvida é um sinal de alerta


A técnica de enfermagem “nunca tinha feito daquela forma”, estranhou a via/dose, a mãe questionou, e mesmo assim o procedimento foi realizado.


Do ponto de vista ético e legal:

  • O Código de Ética da Enfermagem é claro: o profissional não deve executar procedimento para o qual não se sente seguro ou que considere inadequado, sem antes questionar e esclarecer.

  • “Eu só obedeci” não protege ninguém, nem profissional, nem paciente.


Para o técnico de enfermagem, ficam lições duras, porém importantes:

  • Na dúvida, pare. Questione. Chame o enfermeiro. Chame o médico. Registre se for preciso.

  • É melhor “levar bronca” por atrasar a medicação do que manter uma conduta que você já sente que está errada.

  • Dúvida em droga de alta vigilância não é detalhe. É alerta máximo.



6. Formação rasa x prática em alta complexidade


Outro ponto essencial é a formação:

  • Atuar em urgência e emergência, principalmente com pediatria e drogas críticas, exige preparo real.

  • Não é curso raso, pós-graduação superficial ou conteúdo “decorado” que vai sustentar decisão em situação de pressão.


Alguns pontos que o caso escancara:

  • Médico emergencista precisa ser treinado para urgência, não apenas “quebrar galho”.

  • Enfermeiro de pronto-socorro precisa de:

o   base sólida em farmacologia de emergência,

o   manejo de via aérea,

o   interpretação clínica rápida,

o   liderança em crise.

  • Técnico precisa conhecer:

o   nome, via, dose usual e riscos básicos dos medicamentos que administra,

o   quando parar e pedir ajuda.


Não é sobre colecionar certificados. É sobre competência real ligada à vida real do paciente.



7. O que esse caso ensina, na prática?


Em vez de buscar “o grande culpado”, vale transformar esse episódio em uma lista de aprendizados:


1.     Drogas de alta vigilância exigem travas de segurança institucionais. Não podem ser tratadas como medicamentos comuns de prateleira.


2.     Fluxos claros salvam vidas.

o   Quem pode retirar?

o   De onde?

o   Com qual autorização?

o   Em quais situações?


3.     O técnico de enfermagem não é executor cego. Tem autonomia e dever ético de questionar sempre que tiver dúvida.


4.     O enfermeiro precisa estar na construção do sistema, não apenas “apagando incêndio”.

o   Protocolos

o   Treinamento

o   Organização de carrinho de emergência

o   Interface com farmácia


5.     Formação em urgência não pode ser “meia boca”. Se você escolhe trabalhar em pronto-socorro, UTI, porta de emergência, precisa assumir o peso dessa escolha em termo de estudo.


6.     Cultura de segurança significa cultura de humildade.

o   Fazer pergunta difícil

o   Admitir que não sabe

o   Interromper um processo que parece errado



8. Conclusão: antes de apontar o dedo, olhe para o sistema – e para si mesmo


A pergunta “Cadê o enfermeiro?” é legítima, mas incompleta.


Melhor seria perguntar:

  • Cadê o fluxograma de alta vigilância do hospital?

  • Cadê o protocolo de liberação de drogas críticas?

  • Cadê a cultura que encoraja técnico a dizer “não vou fazer até esclarecer”?

  • Cadê a formação sólida em urgência/emergência para quem está na linha de frente?


O que aconteceu com essa criança não é “apenas um erro”. É o resultado de camadas de descuido, formação insuficiente, fluxos frágeis e silêncio diante da dúvida.


Se você está lendo isso como enfermeiro, técnico ou estudante, a provocação é simples e direta:

  • Você está estudando para ter conhecimento ou só para ter certificado?

  • Se amanhã alguém questionar uma prescrição estranha na sua frente, você vai repetir o fluxo no automático ou vai ter coragem de interromper?


Porque, no fim, a linha que separa uma conduta segura de uma catástrofe pode ser justamente o momento em que você escolhe perguntar em vez de apenas obedecer.

 

Prof. Éder MarquesPrática Enfermagem


 

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